Saída de Mestre – parte 2

Entraram ali em busca de glória, um grande tesouro ou o bem maior. A fome e o desespero devoraram-lhes a memória. O que todos eles querem agora é apenas sair. Ou quase todos…

Segunda parte do conto Saída de Mestre, caso não tenha lido a primeira parte clique aqui!

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Conto por Vinicius Tribuzi.
Ilustração por Arthur Tribuzi.

Saída de Mestre Parte

Saída de Mestre

parte 2

Em algum dia perdido no passado Bors tinha sido carbonizado por um grande dragão vermelho. Zyx-lin se foi em uma batalha campal no desfiladeiro das banshees. Até hoje não sei o que aconteceu, só sei que tinha mais de dez demônios mortos em volta dela. Yunauanê fora atingido pela ira dos deuses. Mesmo derrotando o Dracolich, ele não recebeu a proteção que merecia e tinha sido destruído por um relâmpago púrpura. Não ouço nada em meu ouvido esquerdo por causa dessa maldição do deus da morte.

Quedas em batalha, partidas gloriosas. Companheiros que eu havia perdido em grandes missões. Aventuras que revelaram grandes tesouros. Itens fantásticos, lugares esquecidos da história, riquezas maiores que a de alguns reinos. Pra quê? De que valem essa porcarias? O tesouro que eu mais queria era ter meus amigos comigo.

Daria tudo por mais uma noite de amor ao lado de Zyx. Seus beijos doces, acredite, só perdiam para o seu olhar centenário. Seus olhos lilases de elfa me faziam ir ao paraíso. Queria poder rir da embriaguez de Bors na taverna. Que sempre começava com ele se gabando de ser o homem mais resistente ao hidromel, de todo o mundo. Yun, ah, meu melhor amigo. Nunca me deixou desanimar. Na beira do abismo das almas ele bateu no meu ombro, nunca vou esquecer de sua voz grave de trovão:

– Zyx-lin o espera no além. Lá vocês dois serão eternos. No reino dos deuses ela não vai ter que assistir você definhar enquanto ela fica sozinha. Então meu amigo, se você pular vai acabar sobrando pra mim.

– Eu não tenho mais nada. Eu sou um peso para você, eu já estou morto meu amigo. Sou uma carcaça ambulante.

– Quando ela descobrir que você se suicidou e foi parar no reino do deus da morte eu vou ter que ir lá estapear a cara de fumaça dele e te sequestrar. E não me olha com essa cara não! Você conhece a teimosia de Zyx, sabe que ela não vai me deixar em paz quando souber que eu deixei você fazer isso. E você sabe muito bem que irei atrás de você. Já fui a lugares muito piores por você seu cabeça de goblin. Não, você não tem escolha. Você vem comigo.

Eu devia ter pulado, quem sabe assim Yunauanê ainda seria o guardião do Sol. Não importa. Eu não vou deixar que isso aconteça de novo.

– Nós vamos sair daqui nem que eu tenha que tirar, na unha, pedra por pedra dessa porcaria de lugar! Tá me ouvindo seu filho da mãe desgraçado! Eu não quero mais saber do seu desafio de merda! Eu vou sair daqui com meus amigos!

A água já estava na minha cintura. Ganbim levantava da água de vez em quando para dar alguma ideia. Alana enfiava uma de suas espadas através da gosma, procurando alguma fenda nas paredes. Não sei se foi o medo ou a raiva, mas minha mente esqueceu a fome e o cansaço, e voltou a funcionar.

A saída não poderia ser para cima. Restavam as paredes, mas o chão era o mais provável. Sim pois era o mais absurdo, ter que mergulhar na água para não morrer afogado. Se eu tinha aprendido alguma coisa naquele lugar, era que alguém ali queria nos fazer pensar dessa forma, maluca e absurda.

– Alana esqueça as paredes. Me empresta uma espada e vamos procurar no chão.

Ela nem questionou. Minha voz saiu como antigamente. Firme e decidida.

– Se encontrar algo não cutuque ainda, pode ser a saída e nós precisamos dar um jeito no ladino antes de sair da água.

Ganbim também mexia na gosma grudenta usando sua adaga.

Quando molhado, o piche ficava mais viscoso, quase sólido, e começava a sair em pequenas bolotas. Na mesma hora olhei para cima para medir o tamanho dos buracos por onde caía a água. Era do tamanho certo.

– Alana suba em minha costas! Podemos usar essa gosma para vedar os buracos e parar a água, assim ganhamos mais tempo.

Ela olhou para mim entortando a boca para um lado e erguendo a sobrancelha esquerda.

– Só se eu quiser te matar afogado né ancião. Vem aqui, você senta no meu ombro. Ganbim! Vai passando essas bolinhas de gosma para mim.

Meio sem jeito eu fiquei nos ombros dela e as bolotas eram passadas de mão em mão. Assim fomos tapando todos os orifícios. Quando finalmente terminamos a água já estava quase na altura do meu peito. Ganbim parecia um tritão nadando de um lado para outro naquele lugar. Pequenas membranas cresciam entre seus dedos.

– Bom pelo menos agora nós todos vamos poder morrer de fome juntos.

– Ninguém vai morrer de nada! Não sob minha responsabilidade. Eu tenho um pla…

O teto cedeu, só não na parte onde era o corredor, sobre nossas cabeças. As pedras vieram abaixo, trazendo uma enxurrada e nos varrendo dali. Eu estava muito ocupado tentando não me afogar e tentando manter todos juntos no meio daquele turbilhão, então não sei onde nós fomos parar.

Depois de tossir, engasgar e vomitar um pouco eu me levantei. Tirei minha sacola de espaço infinito e fechei os olhos para me concentrar. Não havia muito tempo, Ganbim não era uma criatura de boa constituição, logo iria desmaiar. Uma grande jarra de vidro, argila e um pouco de resina.  A chama de uma tocha me ajudou a selar aquilo. Estava ridículo, mas ele iria viver.

Ganbim tinha uma das mão segurando a jarra para ajudar a equilibrar a cabeça. A jarra com água servia de aquário pessoal. Na base do pescoço a cera e a argila impediam qualquer vazamento. Em qualquer outra situação estaríamos rindo. Mas não ali.

Uma passagem se fechava atrás de nós. O chão estava inteiro molhado. No teto, inúmeras estantes com livros. Era uma pequena biblioteca, invertida. Parecia que nós estávamos andando no teto daquele lugar. Era bem iluminada, uma tocha a cada três passos, com as chamas fagulhando para baixo. No meio daquele cenário, que de tão bizarro chegava a causar tontura (ou talvez era a fome), um feixe de luz chamou a minha atenção. Seguindo aquele feixe achei um buraco na parede. Cabia um olho e eu pude ver o início do pôr-do-sol.

– Dá pra ver lá fora.

Alana foi correndo espiar. Ganbim só não foi por que não conseguiria, com aquele aquário na cabeça. Nós estávamos a sei lá quantos dias presos ali, talvez semanas. Ver o mundo lá fora renovava a vã esperança que ainda nos restava.

– Não vamos deixar isso nos distrair, é só uma provocação…

Eu sabia que aquilo era pra mexer com as nossas cabeças.

– Querem que fiquemos nos lamentando com saudade do mundo lá fora…

Aquele discurso era para manter meus amigos unidos e firmes.

– Mas não vamos cair nessa. Esse buraco…

Mas minha mente bolava um plano.

– … mal dá pra passar…

Meus olhos marejavam mesmo antes de entender por completo o plano que meu subconsciente já havia feito.

– … uma varinha.

A frase terminou junto com o raciocínio. Era isso. Uma solução. Não era perfeita, mas era muito melhor que qualquer outra coisa que fosse possível de fazer naquele inferno. As lágrima não caíram. Eu pude sorrir. Fechei os olhos. Alívio.

– Não! Nem vem que eu conheço essa tua cara. Não sei o que é mas já digo que eu não vou aceitar!

Ganbim soltou algumas bolhinhas e abriu os braços com as palmas das mãos para cima, encolhendo os ombros.

– Eu consigo sobreviver aqui sozinho mas, obviamente, não consigo garantir a segurança de vocês. Eu vou ficar bem Alana, mas Ganbim está em estado crítico. Preciso que você o leve até a passagem secreta da estalagem. O xamã vai saber como salvar ele.

O ladino foi a desculpa perfeita, Alana não poderia negar-se a salvar a vida de um companheiro. Ela cruzou os braços bufando e olhando para o outro lado. Me doía por que sabia que ela estava sentida. Eu sabia o quão difícil era deixar alguém para trás.

– Você prometeu cuidar de mim quando me tirou daquele lugar! E agora como que fica essa promessa seu velho!

– Você agora já está crescida, não precisa mais de mim.

– Quem é você pra saber o que eu preciso ou não!

– Alana eu não vou morrer. Mas não sei quanto tempo vai levar pra eu conseguir sair daqui. Nós vamos ficar um tempo separados, só isso. Preciso que você se cuide. Assim que eu conseguir sair eu vou ao seu encontro.

– E até lá, eu faço o quê? Fico sentada que nem uma princesa idiota esperando ser salva?

– Até lá você fica mais forte, mais esperta, mais experiente. E se no próximo inverno eu não tiver saído, você volta aqui, me pega pelas orelhas e me leva de volta para casa.

Súbita e veloz ela me abraçou. Não fez nenhuma promessa, nem precisava.

Peguei minha bolsa de espaço infinito. Uma antiga vara de pescar da vila dos pequeninos e a Bússola do Saber.

– Vou deixar vocês perto da saída, mas ande sempre na exata direção que a bússola apontar, mesmo que pareça algo absurdo como andar em círculos. Se não fizer isso podem ficar presos pra sempre entendeu?

– Não sou idiota, eu já entrei aí lembra?

– Então vamos, sem mais delongas, não sei quanto tempo Ganbim tem. Entrem na bolsa.

Como um carrasco que coloca o capuz no condenado fiz ela, e depois o pequenino, sumirem na bolsa de espaço infinito. O pequeno saco de tecido foi torcido e retorcido até que coubesse no buraco da parede. Com a vara de pescar empurrei e espremi, até que a bolsa caísse do outro lado.

Poucos minutos depois pude ouvir eles emergindo da dimensão paralela e então pude vê-los.

– Vão agora e acampem o mais longe daqui que puderem. Uma fogueira e uma caça bem assada vão dar a força que vocês precisam para chegar até o vilarejo.

Lágrimas nos olhos de Alana.

– Se eu não sair, vou estar aqui. Eu prometo.

Ela balançou a cabeça positivamente. Se não era para falar firme e alto então ela preferia não falar. Começava a ficar escuro lá fora e logo os perdi de vista.

Lá estava eu naquele lugar estranho. Algo me corroía mais que a fome e o cansaço, a curiosidade. Aquele lugar parecia não fazer parte do desafio. Nenhum mostro, nenhuma armadilha. Eu já havia andado em quase todo o cômodo e nada. Aquela biblioteca parecia ser uma sala secreta. A sede de conhecimento me tomou. Que segredos guardariam uma biblioteca escondia na pior masmorra do mundo?

Deixo esse pergaminho como um registro de minha passagem. Se você estiver lendo isso significa que eu ainda não saí. Estou perdido em algum lugar ou em algum livro. Mas peço que tenha cuidado se encontrar um mago com chapéu de couro negro, pontudo e de aba larga. Não sei quanto tempo minha mente aguenta aqui antes de se perder nas doçuras da insanidade.

Fim

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